quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

De cozinhar, de afetos e de lembranças

Em minha família quase todos gostamos de cozinhar. E todos, sem exceção, gostamos de comer. Somos uma família numerosa. Nossas reuniões giram inevitavelmente em torno de uma motivação culinária, ainda que o pretexto seja uma data qualquer.
Aprendemos, sem nos dar por conta disso, a distribuir afetos culinários, nossa maneira de nos presentear uns aos outros.
Minhas irmãs tem cada qual sua especialidade, aprendidas com minha mãe e desenvolvidas pelos seus gostos pessoais.
Lembro-me, especialmente, de minha mãe depois de episódios dolorosos para nós duas, preparando meu prato predileto.
Era sua forma de pedir e oferecer perdão; sem palavras, pois não cabia a uma mãe de sua geração fazê-lo expressamente. Como não cabia falar de amor a filhos e filhas já crescidos, ela fazia à sua maneira: Apresentava o cardápio do dia.
Jamais me esquecerei da simbologia de alguns pratos, de como ela demonstrava o amor, extraído sabe-se lá a que custo, para poder aconchegar-nos como se fossemos, novamente, suas criancinhas.
Minha irmã mais velha também tinha suas artimanhas culinárias. Sacava uma receita "da manga" a cada visita à casa materna. Trazia mesmo que de ônibus, os ingredientes que só havia em sua cidade; uma carne com um tempero especial, um bolo de fubá que uma vizinha fazia "como ninguém", uma berinjela em conserva de sabor indescritível...
Era sua forma de nos presentear, de dizer que sentia nossa falta, de demonstrar alegria por estarmos juntas.
Foram dela quase todos os bolos de aniversário de meus filhos, além da preparação da maioria dos pratos e organização das festas de Natal e Ano Novo.
Todas nós ajudávamos, mas ela só parava quando chegava ao fim, vale dizer, esgotada, extenuada, tendo trabalhado feito uma louca, pois não aprendera a fazer concessões a si própria.
Quando ela adoeceu e nos demos conta da gravidade de sua doença, ficamos todas perdidas, sem chão...
Ela era a que ajudava. Nunca houvéramos pensado que teríamos que dar ajuda, não estávamos preparadas para ver desabar aquela laboriosa, dura, doce e calada fortaleza.
Na rápida e violenta evolução de sua doença, debilitada, eis que ela começa a querer comer de tudo. Indicava e pedia sem pudor, os pratos que já não podia fazer.
Foi dessa forma que pudemos todos, sua filha e nós irmãs e irmãos, mimá-la com nossas criações culinárias.
O que não sabíamos, aprendíamos, inventávamos, dávamos um jeito, agradecendo a Deus por aquele seu inusitado apetite e pela oportunidade de retribuir tudo o que recebêramos dela ao longo dos anos de convivência que estavam se acabando.
Quando nos faltaram as palavras, quando até falar de amor podia machucar, nós, como minha mãe, apresentamos o cardápio...
Uma vez escrevi que nossos pais nos transmitiram a inquietude,o desassossego e uma forma poética de tentar organizar o caos.
Transmitiram-nos, também, essa capacidade tão humana e ancestral de dar amor. E isso nos tem salvado, nos tem mantido unidos: As lembranças das reuniões alegres.
Quero crer que, como Babette, nós e os nossos seguiremos celebrando a vida e trocando afetos ao redor de uma mesa, despudoramente felizes, sem medos e sem culpas.

Adalgiza Zanirato

3 comentários:

  1. Que lindo, Ada! Emocionou-me esse seu texto sobre nossa mana. Maravilhosa homenagem a ela.
    Beijos

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  2. Linda tradução do sabor do amor! Tão bom quando vc cozinha prá mim! Ao invés de dizer eu te amo a gente diz: vou fazer uma comidinha prá vc! Mesmo que seja uma polenta!!! Bjs, Te amo! ou seja. vou fazer seu prato favorito quando me visitar!:D.

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  3. Ada, eu leio e releio essa sua crônica e cada leitura me ensina um pouco mais sobre o viver, o conviver e o amar. Ainda me faltam muitas lições para aprender, mas vou reler muitas vezes mais.
    Parabéns e veja se escreve com mais frequência, você tem o dom e precisa mostrá-lo.

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